A Arte de Ler, do professor e crítico literário, Émile Faguet, é um daqueles livros que fazem parte das grandiosas obras primas e suas lições preciosas sobre como ler bem com o corpo e a alma em perfeita sintonia entre a obra e seu autor. Faguet diz que saber ler é uma arte e que há arte na leitura. Para o insigne autor a arte da leitura repousa sobre a tríade: o leitor, a obra e o autor. Com efeito, a verdadeira compreensão do que se lê ocorre quando a mente do leitor dialoga em sintonia perfeita com a obra. Certa vez, Locke escrevera que “ler fornece ao espírito materiais para o conhecimento, mas só o pensar faz nosso o que lemos“. É verdade. Não se alcança a satisfação do espírito sem tornar nosso as ideias trocadas com os autores através das nossas reflexões. Destarte, veremos que, conforme assinala Faguet, para cada tipo de leitura há uma maneira de ler e refletir.
Ler devagar
Uns leem porque precisam se informar, mas não necessariamente porque precisam saber. Outros leem porque precisam do conhecimento per si e se consagram a uma vida de estudos. Para este, Faguet aconselha a ler devagar, para aquele, o folhear das páginas basta. Quem quer de fato aprender sobre o que ler, precisa fazê-lo devagar. Somente a leitura lenta e rigorosa é capaz de nos fazer refletir sobre as ideias do autor, e assim, construir as nossas próprias ideias. Ler devagar é o primeiro mandamento do leitor excepcional, ensina Faguet. Devemos ler sempre nos perguntando: é isso mesmo?
Precisamos saber se as ideias que aprendemos são realmente do autor, ou se não são conjecturas criadas pelas nossas percepções e crenças. Faguet nos ensina a não nos deixar levar pelas impressões imediatas, superficiais – geralmente traiçoeiras, e desconfiar do primeiro sentido e das conclusões precipitadas a que nos conduz a leitura apressada. A pressa na leitura não é atributo das mentes privilegiadas, é antes, a artes dos preguiçosos.
“É preciso ler com um espírito muito atento e desconfiado da primeira impressão”.
“Mesmo sem a intenção de escrever, é preciso ler com lentidão, o que quer que seja, se perguntando sempre se compreendeu bem e se a ideia que você apreendeu é de fato a do autor, e não a sua”.
“A leitura é uma vitória do tédio sobre o amor-próprio”.
Os livros de ideias
Há uma arte de ler para cada gênero dos saberes, ensina Faguet. Para cada um tipo de saber há um tipo de leitura. A arte de ler livros de ideias políticas e filosóficas difere muito da arte de ler livros de poemas e poesias. No capítulo Os livros de ideias, Faguet examina as principais características dos autores dos clássicos políticos como Platão, Montesquieu, Descarte, Rousseau e Proudhon no tocante a compreender a ideia geral que há no livro, como capta-la e como associa-la a vida do autor. Faguet sublinha que ler livros de ideias é uma arte de comparação e aproximação contínua. Quer o primoroso autor dizer que é necessário penetrar profundamente no universo do autor sem perder a conexão com o mundo exterior ao leitor.
Preciosas lições para toda uma vida de estudo. Faguet ensina que para ler os clássicos é necessário conhecer os autores além das suas obras. Conhecer a origem do autor e a época que ele viveu revelará muito da sua obra e muito sobre o próprio. Como exemplo desta asserção, cita o autor os cuidados necessários ao se ler as obras de Platão e argumenta que quem o lê terá como primeira impressão a ideia de que Platão odeia a democracia. Contudo, após repetidas leituras atentas da obra, o leitor perceberá que se encontrará no fato do Platão ser um aristocrata a origem da sua manifesta recusa pela democracia. Outro exemplo trazido por Faguet é o de Montesquieu e a sua obra prima Do Espírito da Leis. O insigne pensador nasceu na época do reinado de Luiz XIV, governo caracterizado por um forte despotismo que despertou no jovem Montesquieu um latente ódio pelo absolutismo e tudo o que ele representava.
Ler livros de ideias é um enorme desafio para o intelecto, porém é bem mais prazeroso para quem aprecia o pensar. Livros de ideias como os clássicos da filosofia conduzem o leitor a um mundo de diálogo e reflexão trocados com os autores em que ousa-se questionar, criticar, enaltecer a obra e o seu autor. Neste contexto, Faguet assente que para ler os filósofos é essencial ter prazer pelo ato de pensar, pois o universo do filósofo é permeado por ideias e mais ideias que desafiam o leitor, tirando-o do lugar comum. Ler autores da filosofia, assegura Faguet, leva ao leitor a um debate que também encontra equivalência na vida privada. Todos nós podemos ser críticos dos clássicos. Basta para isso que estejamos inserido profundamente no mundo das ideias do autor, estudando-o com zelo e respeito.
“É preciso, então, à medida que se completa e se esclarece, levar em conta, sem cessar, para se compreender o que se lê hoje, aquilo que se leu ontem, e para melhor compreender o que seu leu ontem, o que se lê hoje”.
Escritores obscuros
Há tantos escritores obscuros, assinala Faguet. A obscuridade nas palavras do autor equivale aos livros difíceis de compreender diante da falta de clareza do escritor para expor temas voltados para as ideias – não nos referimos aqui aos livros ruins, estes Faguet aconselha ignora-los. É muito comum abandonarmos um livro nas primeiras páginas pelas suas exigências. Uma grande parte de leitores não consegue distinguir e compreender os sabores que provam nos livros difíceis e se deixa encantar pelo raro e exótico prato limitando-se a falar das suas qualidades inventadas, mas os sabores lhe são completamente estranhos. Outros leitores, apesar de todo empenho para vencer o desafio da leitura de livros difíceis, deixam-se vencer, abandonam a leitura nas primeiras páginas. Mas, há aqueles que interrompem a leitura, reconhecendo quão difícil é a jornada, tão-somente para se fortalecer, retomando a leitura mais tarde para avançar com segurança por terrenos antes nebulosos. Esses levantarão o troféu da vitória na escalada da leitura.
Faguet admite a necessidade de ler autores difíceis, mas tão-somente para simplificá-lo, provando para este que o mesmo pode ser escrito para todos os mortais. Admite-os e os repudia. Quem não desejou ler aquele livro do seu escritor preferido para descobrir que o livro é tão complicado que não vê alternativa a não ser reservar para ele apenas um lugar decorativo na estante? Concordamos com Faguet. Alguns autores, são realmente obscuros. Fazem da sua obra um complexo de códigos como se escrevesse apenas para a sua consciência. Não fazem questão de ser compreendidos. Pelo contrário, deleitam-se no sacrifício daqueles que se arriscam a decifrar seus emaranhados literários. Para alguns que pensam compreendê-los, fazem do seu pensar o do autor, na medida que vêm apenas a partir das suas percepções. Dessarte, colocam-se assim longe do autor. Porém ao decifrar o universo dos escritores difíceis e suas obras quase impenetráveis o leitor estabelecerá um diálogo frutífero com eles e não raramente descobrirá a beleza das ideias e que há luz naquela penumbra.
Portanto, essa não é uma batalha que não pode ser vencida. Pelo contrário, com perseverança e muito trabalho é possível penetrar no universo desses escritores. Se o livro é difícil, se o autor é obscuro, leia-o e releia-o até o fim, ainda que não haja a devida compreensão das ideias.
Os maus autores
Tão necessário quanto ler os escritores obscuros é ler os maus autores, escreve Faguet. Apesar de perigoso, pode ser bom, afirma. Entretanto, qual proveito há na leitura de livros ruins? É necessário saber que na concepção de Faguet os maus autores podem, as vezes, escrever livros de boa qualidade. Em suas palavras, “é possível que a leitura dos livros maus seja uma catarse de preciosa utilidade moral”. Haja vista existam tantas obras que não merecem ser publicadas alguns livros devem ser evitados, pois nada nos acresce. Por outro lado, é possível descrever o sabor de algo sem nunca tê-lo provado? Não é necessário sentir no paladar o seu sabor e textura para que se possa dar a mais sincera opinião? Do mesmo modo é a leitura do livro ruim. Saber que se produz, ainda, obras de tão baixa qualidade literária, não deve ser uma questão de ego, mas de distanciamento. Todavia, há aqueles autores que pela sinopse tem-se o suficiente para jamais abrir seus livros. Nesses casos, simplesmente, não vale a pena, pois existem uns cem números de bons livros esperando para serem lidos e certamente, toda uma vida é insuficiente para que todos sejam lidos.
Os inimigos da leitura
Assinala Faguet que há os inimigos da leitura. Estes não se posicionam entre aqueles que não gostam de ler ou, ainda, que o subestime a favor dos seus interesses pessoais. Pelo contrário, os inimigos da leitura são categorias encontradas entre os que gostam de ler. Faguet sublinha que os inimigos da leitura são as tendências, são as inclinações, são os hábitos que impedem de ler bem. Com efeito, os inimigos que a maioria das pessoas encontram na leitura vem das suas crenças e falta de tempo, assim como a supremacia dos vícios e prazeres materiais que as acompanha, impedindo a contemplação, a meditação e a reflexão, tão necessários para o cultivo do bom hábito de ler livros. Alia-se a estas coisas as atribulações e distrações da vida moderna.
Assim, Faguet afirma que os inimigos da leitura são o amor-próprio, a timidez, a paixão e o espírito de crítico. “A vitória a leitura é a vitória do tédio sobre o amor-próprio“, assim postula Faguet, pois para ele há autores que tomados pelo ciúmes não são capazes de admitir críticas às suas convicções e crenças, muito menos às suas obras. Essa postura do autor, põe o leitor reticente à uma leitura em que não é possível uma crítica. Como afirma Faguet, esse ar de superioridade é insuportável para a maioria dos leitores. O homem que ler não tem paixões, observa Faguet. Eu adicionaria, com todo o respeito ao insigne autor, que o homem que ler tem paixão pela leitura, se consagra aos livros e se desfaz dos outros prazeres. Todavia, é o espírito crítico o maior inimigo da leitura, segundo Faguet. Por que? A expressão de La Bruyére, “o prazer da crítica nos tira o de sermos vivamente tocado pelas coisas belas“, tomada de empréstimo por Faguet, pode ser a resposta para tão polêmica questão. Quer dizer o grande autor que o leitor ao debruçar-se sobre a crítica pode não perceber as belas mensagens que a leitura menos crítica traria à luz.
Entretanto, Faguet mostra-nos que, ainda que sobre essa asserção resida a verdade, há o outro lado que merece consideração. A sisudez do crítico logo se desfaz diante do verdadeiro belo. Quando isso acontece ele se dar por completo e rende-se a perfeição.
“A crítica não é outra coisa senão um exercício contínuo do espírito pelo qual nos tornamos apto a compreender onde está o falso, o fraco, o medíocre, o ruim e a ser muito sensível ao falso, ao fraco, medíocre e ao ruim, graças ao qual somos igualmente sensíveis ao verdadeiro e ao belo“
“É preciso dizer que somente os críticos se alegram vivamente. O leitor crítico é o leitor armado, armado com armas defensivas. Não se o aprisiona, não se o amarra logo de cara, nem facilmente. Mas, precisamente por causa disso, quando se encanta, a embriaguez do prazer o faz largar todas as arma“.
Leitura dos críticos
E, falando nos críticos, devemos lê-los? Por que? Ler antes da obra original? No capítulo leitura dos críticos Faguet responde que depende: se o autor é um historiador literário ou um crítico. Se for um historiador literário, a resposta, segundo Faguet, é sim. Se for um crítico, nunca antes de ler o original. Por que? Antes necessário se faz a compreensão da distinção entre o historiador literário e o crítico. Para Faguet, o historiador literário é aquele que que lhe dará todas as informações que lhe são úteis e que introduz o leitor no mundo do autor. Faguet diz que o historiador literário “deve apenas conhecer e fazer conhecer os fatos e as relações entre os fatos“. Por outro lado, o crítico será um filtro entre o leitor e o autor. Infeliz do leitor que ler a crítica de uma obra antes da leitura da própria obra.
“O crítico, ao contrário, começa onde o historiador literário termina, ou melhor, está sobre um plano geométrico diferente daquele do historiador literário“.
Portanto, aprendemos com Faguet, que não será a visão do autor original que o leitor terá, donde poderia fazer o seu próprio pensar, mas a percepção do autor original através das reflexões do crítico. Se por um lado, a leitura crítica pode poupar o leitor da leitura decepcionante do original, é verdade que na maioria das vezes isto tende a adiar o objetivo de ler o original ou então jamais será lido. Porém, se a intenção do leitor é conhecer a história da obra e do autor para saber acerca do contexto e a época sob a qual ela se desenvolveu, é recomendado a leitura da história da obra.
“No fundo, não se deve dizer que os críticos jamais se alegram. É preciso dizer que somente os críticos se alegram vivamente“
Conclusão
O nosso cérebro não foi feito para leitura. Passamos mais de dois milhões de anos usando o nosso cérebro apenas para a fuga, o ataque e o acasalamento. Somente nos últimos dez mil anos começamos a ler. Logo, é fácil concluir que estamos engatinhando. Isso explica porque tão poucos gostam de ler e tantos tem repúdio pela leitura. A arte de ler de Émile Faguet abre os horizontes da leitura, classificando-a com beleza, mostrando que mais que uma arte cultural, ler é uma arte do prazer para o espírito.