O Chamado da Tribo representa uma notável contribuição literária concebida por um proeminente intelectual do século atual, cujo objeto de estudo gira em torno das fontes inspiracionais que influenciaram significativamente sua trajetória como escritor. O autor em questão é Mario Vargas Llosa, laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, que oferece uma admirável homenagem aos pensadores que, de acordo com sua perspectiva, desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento do pensamento liberal contemporâneo. Com vasta erudição e uma visão otimista da realidade, Mario Vargas Llosa, um dos mais destacados representantes literários da corrente liberal em nosso tempo, presta, nesta obra, um tributo aos homens de notável virtuosismo que incansavelmente almejaram a liberdade e cuja influência modelou profundamente sua própria jornada intelectual. Vale ressaltar que o legado literário do autor abarca uma ampla gama de gêneros, englobando romances e ensaios de teor político sob o prisma liberal.

     Após o flerte com o marxismo na juventude, Mário Vargas Llosa percebeu que aquela árvore não lhe renderia bons frutos. Desencantado,  direcionou os seus interesses intelectuais para o liberalismo e com isso se tornou um dos importantes mais liberais do seu tempo, expressando em seus ensaios e livros as suas ideias sobre o liberalismo político. Para Llosa “optar pelo liberalismo foi um processo acima de tudo intelectual, de vários anos, muito ajudado pelo fato de eu ter residido na Inglaterra do final dos anos 1960, lecionando na Universidade de Londres, e vivido muito de perto os onze anos do governo de Margaret Thatcher”. Antes, porém, viveu a sua “gonorreia juvenil”, tomando emprestada a expressão de um grande liberal brasileiro, Roberto Campos, que como ele se deixou infectar pelo vírus do comunismo. 

     Naqueles tempos, Llosa, como todos os jovens idealistas da sua época, tinha um ódio visceral pelas injustiças dos poderosos contra as massas, motivo que adquirira simpatia pelos ideais da esquerda, confessa: Por isso eu tinha sido esquerdista e comunista na mocidade; mas, atualmente, nada representava tanto o retorno à “tribo” como o comunismo, com a negação do indivíduo como ser soberano e responsável, voltando à condição de parte de uma massa submetida aos ditames do líder, espécie de beato religioso cuja palavra é sagrada, irrefutável como um axioma, que ressuscitava as piores formas da demagogia e do chauvinismo”.

     Mas essa fase logo passou quando se decepcionou com o socialismo soviético vigente. Ao perceber as contradições daquela ideologia, as portas da liberdade, estava claro para Llosa, não eram a do socialismo. De maneira que o insigne autor rompe com os devaneios juvenis e reconhece cedo que o comunismo era uma brincadeira de criança de muito mal gosto. Ele conta que: “o liberalismo é uma doutrina que não tem respostas para tudo, como pretende o marxismo, e admite em seu seio a divergência e a crítica, a partir de um corpo pequeno, mas inequívoco, de convicções. Por exemplo, de que a liberdade é o valor supremo e de que ela não é divisível e fragmentária; é uma só, e numa sociedade genuinamente democrática deve se manifestar em todos os domínios — o econômico, o político, o social, o cultural”, e esclarece ainda que “o espírito tribal, fonte do nacionalismo, foi o causador, junto com o fanatismo religioso, das maiores matanças na história da humanidade. […]Um governo liberal deve enfrentar a realidade social e histórica de maneira flexível, sem pensar que é possível enquadrar todas as sociedades num único esquema teórico, atitude contraproducente que provoca fracassos e frustrações”. Para Llosa o liberalismo em todas as suas vertentes é o único sistema de ideias compatíveis com os anseios dos indivíduos e que de fato pode prover uma ética social democrática e justa de onde ele extrai a seguinte asserção:  “Nós, liberais, não somos anarquistas e não queremos suprimir o Estado. Pelo contrário, queremos um Estado forte e eficaz, o que não significa um Estado grande, empenhado em fazer coisas que a sociedade civil pode fazer melhor que ele num regime de livre concorrência. O Estado deve garantir a liberdade, a ordem pública, o respeito à lei e a igualdade de oportunidades”.

     O curioso título do livro O Chamado da Tribo tem uma razão tão curiosa quanto. O próprio autor explica que é uma metáfora sobre as comunidades que se dobram aos caprichos do totalitarismo, compartilhando da “consciência de manada” nos regimes totalitários e suas ideias de libertação do homem, bem como a promessa de prover um novo paraíso. Os heróis de Llosa certamente não fazem parte dessa manada. Pelo contrário, suas ideias, suas histórias em prol da liberdade, os seus maiores objetivos, refletem exatamente a luta contra a corrente dos iluminados. Enfim, nesta bela homenagem, Llosa conta-nos um pouco da luta, angústia, predestinação daqueles que prestaram um enorme serviço à humanidade. Seus pensamentos estão imortalizados em suas obras, atemporais, profundas, resplandecentes como uma luz que leva clareza à escuridão. Escuridão que a humanidade insiste em trilhar, jornada perigosa que nos nossos dias, estão tão presentes. 

     Extraímos da referida obra algumas partes que refletem o legado deixado por essa legião de guerreiros das letras. Llosa os analisam em todas as suas fases, tanto como pessoas comuns como intelectuais e suas produções. O que eles têm em comum é a transformação que as suas ideias provocaram em suas respectivas épocas que refletem até o nosso tempo como um legado indispensável para a evolução da humanidade.

 

Adam Smith 

     O criador da expressão “mão invisível” é o primeiro homenageado. Llosa começa contando um pouco da vida daquele que plantou as primeiras sementes do liberalismo econômico, autor da fundamental obra A Riqueza das Nações. Na descrição de Llosa, Adam Smith viveu de acordo com as suas ideias cuja ética fora descrita em sua não tão famosa obra: Teoria dos Sentimentos Morais. Assim, Llosa delineia um retrato da vida cotidiana e acadêmica de um dos mais importantes pensadores na fundação da economia moderna, bem como a grande contribuição de Adam Smith como um dos fundadores do pensamento liberal. Nas palavras de Llosa sobre Adam Smith, “não são muitos os depoimentos sobre a sua pessoa, mas os que existem coincidem em afirmar que era, além de um intelectual de altíssimo valor, um homem bom, de hábitos sadios, modesto, simples, austero, corretíssimo, com explosões excepcionais de mau humor, cuja vida era dedicada ao estudo.

     Adam Smith, como um dos precursores do Liberalismo econômico, forneceu os fundamentos que influenciaram o pensamento dos seus predecessores. Llosa explica que o sistema que Adam Smith descreve não é criado, e sim espontâneo: resultou de necessidades práticas que começaram com a troca dos povos primitivos e prosseguiram com formas mais elaboradas de comércio, o surgimento da propriedade privada, das leis e tribunais, ou seja, do Estado, e, sobretudo, da divisão do trabalho que multiplicou a produtividade. A base para a concepção de Adam Smith sobre a liberdade econômica funda-se sobre a propriedade privada, sob as quais nos dizeres de Llosa “o livre mercado pressupõe a existência de propriedade privada, igualdade dos cidadãos perante a lei, rejeição dos privilégios e divisão do trabalho”.

     Destacamos abaixo algumas das reflexões feitas sobre a personalidade e as ideias de Adam Smith:

“Se a conduta moral depende em boa parte dessa personalidade própria de cada indivíduo, este constitui a célula básica da sociedade, o ponto de partida das diferentes coletividades a que pertence ao mesmo tempo, mas nenhuma das quais pode subsumi-lo ou aboli-lo: a família, o trabalho, a religião, a classe social, o partido político“.

“Essa “mão invisível” que empurra e guia os trabalhadores e os criadores de riqueza para cooperarem com a sociedade foi um achado revolucionário e, também, a melhor defesa da liberdade no âmbito econômico”.

“Para muitos leitores de A riqueza das nações foi desconcertante descobrir que o motor do progresso não é o altruísmo nem a caridade, mas antes o egoísmo”.

“Os grandes inimigos do livre mercado são os privilégios, o monopólio, os subsídios, os controles, as proibições.

A riqueza das nações explica a origem e a função do dinheiro nessas sociedades primitivas que pouco a pouco se tornaram mercantis”.

“Sublinha que o intervencionismo estatal, ao frustrar a livre concorrência, é uma receita infalível para o fracasso econômico”.

“Sentir-se seguro em relação aos seus direitos é fundamental para a existência de uma sociedade livre”.

 

José Ortega y Gasset

     O último aristocrata liberal, vão dizer alguns. José Ortega y Gasset, autor da famosa obra A Rebelião das Massas, um clássico do pensamento liberal do Ocidente, foi sem dúvidas um homem único no seu tempo. Dono de uma profunda visão da vida europeia e dos seus problemas sociais,  políticos e econômicos,  através da sua filosofia analisou a decadência da Europa. Sua erudição e profundo gosto pelas artes os levaram a realizar grandes reflexões estéticas sobre o homem contemporâneo. Ortega foi um aristocrata, um homem das elites, não no sentido vulgar,  mas naquilo que engrandece os espíritos de grandes homens de saberes. Ortega foi jornalista, ensaísta, crítico de arte e filósofo.  Há quem diga que ele nunca foi filósofo. À tal injustiça, Llosa insurge-se na seguinte expressão: Por esta última característica de sua prosa, alguns lhe negam a condição de filósofo e dizem que era só literato ou jornalista. Eu adoraria que tivessem razão, porque, sendo verdadeira a premissa na qual se inspira esse juízo excludente, a filosofia não faria falta, a literatura e o jornalismo substituiriam com vantagem a sua função. Em que sentido Ortega era um liberal? No prático, nos costumes e no pensamento político.  Porém não era um bom pensador na economia, observa Llosa, “mas um liberal limitado pelo seu desconhecimento da economia, um vazio que às vezes o levou, ao propor soluções para problemas como o centralismo, o caciquismo ou a pobreza, a defender o intervencionismo estatal e um dirigismo voluntarista totalmente alheios àquela liberdade individual e cidadã que defendia com tanta convicção e boas razões”. Abaixo algumas reflexões de Llosa sobre as obras e a vida de Ortega y Gasset:

“A rebelião das massas se estrutura em torno de uma intuição genial: a primazia das elites terminou; as massas, libertas da sujeição àquelas, irromperam de maneira determinante na vida, provocando um transtorno profundo dos valores cívicos e culturais e das formas de comportamento social”.

“A rebelião das massas se estrutura em torno de uma intuição genial: a primazia das elites terminou; as massas, libertas da sujeição àquelas, irromperam de maneira determinante na vida, provocando um transtorno profundo dos valores cívicos e culturais e das formas de comportamento social”.

“Em A rebelião das massas advertiu, com visão certeira, que no século XX, ao contrário do que vinha ocorrendo antes, o fator decisivo da evolução social e política não seriam mais as elites, mas os setores populares anônimos, trabalhadores, camponeses, desempregados, soldados, estudantes, coletivos de toda índole, cuja irrupção — pacífica ou violenta — na história iria revolucionar a sociedade futura e desenharia uma nítida fronteira com a de antes“.

“Simplesmente, Ortega entendia que os padrões estéticos e intelectuais da vida cultural deviam ser fixados pelos grandes artistas e os melhores pensadores, aqueles que tinham renovado a tradição e estabelecido os novos modelos e formas, introduzindo uma maneira diferente de entender a vida e sua representação artística“. O chamado da tribo

Friedrich August von Hayek

     Hayek foi um dos luminares da Escola Austríaca de Economia. Suas teorias sobre utilidade marginal e ações espontâneas, bem como a sua forte rejeição ao sistema estatal de economia, a planificação, foram junto com Ludwig von Mises e outro grande expoente da Escola Austríaca de Economia e os demais fundadores como Karl Menger e Eugen von Böhm-Bawerk, a força motriz do livre mercado. Hayek era respeitado por todos os economistas europeus, e principalmente,  era admirado pelo o seu maior opositor intelectual: o economista americano John Maynard Keynes, também conhecido como lorde Keynes, devidos ao seus estilo aristocrático-extravagante. Os dois travaram uma grande batalha intelectual que culminara na era Keynes e na era Hayek. Na opinião de Llosa, ambos “tinham chegado à economia através da filosofia e os dois acreditavam na importância do elemento subjetivo no trabalho intelectual, o qual se negavam a subordinar ao puramente científico. Nenhum dos dois foi um democrata ardoroso e ambos se declaravam admiradores de Hume, Burke e Mandeville”.

     O reconhecimento mundial de Hayek veio com o lançamento da sua estupenda obra O Caminho da Servidão, em 1944, que atacava frontalmente o socialismo e refutava a economia planificada. Llosa explica que “das suas teses, a mais conhecida, e hoje tão comprovada que virou quase um lugar-comum, é aquela que expôs no seu pequeno panfleto (depois transformado em livro) de 1944, O caminho da servidão: a de que o planejamento centralizado da economia mina inevitavelmente os alicerces da democracia e faz do fascismo e do comunismo duas expressões do mesmo fenômeno, o totalitarismo, cujos vírus contaminam qualquer regime, até o aparentemente mais livre, que pretenda “controlar” o funcionamento do mercado”. Para Hayek, só o individualismo, a propriedade privada e o capitalismo de mercado garantem a liberdade política. Como sustenta Llosa: “Distribuir a pobreza não traz riqueza a ninguém, só contribui para universalizar a pobreza“.

     Hayek foi o que se costuma chamar de polímata, um homem de muitos saberes e de vasta cultura, dada a sua abrangência de estudo em diversas áreas. Certamente isso lhe deu uma visão mais completa do comportamento humano, noção fundamental para as suas teorias econômicas.  Llosa concorda com essa reflexão ao observar: Como Von Mises, como Popper, como Berlin, Hayek não pode ser enquadrado dentro de uma especialidade, a economia, porque suas ideias são tão renovadoras no campo econômico como na filosofia, no direito, na sociologia, na política, na psicologia, na ciência, na história e na ética”. Conforme observações de Llosa a respeito das ideias de Hayek, é fácil entender porque ele foi um dos mais importantes economistas do século XX.

“Ninguém, nem sequer Von Mises, resenhou melhor que Hayek os benefícios de toda ordem para o ser humano proporcionados por esse sistema de intercâmbios que ninguém inventou, que foi nascendo e se aperfeiçoando em decorrência do acaso e, sobretudo, da irrupção desse acidente na história humana que se chama liberdade”.

“A obra inteira de Hayek é um prodigioso esforço científico e intelectual para demonstrar que a liberdade de produzir e comercializar não serve para nada — como comprovaram a ex-União Soviética, as repúblicas ex-socialistas da Europa Central e as democracias mercantilistas da América Latina — sem uma ordem legal estrita e eficiente que garanta a propriedade privada, o respeito aos contratos e um poder judicial honesto, capaz e independente do poder político“. 

“Porque ninguém insistiu tanto como ele em afirmar que o liberalismo não consiste em liberar os preços e abrir as fronteiras à concorrência internacional, mas na reforma integral de um país, na sua privatização e descentralização em todos os níveis, e em transferir para a sociedade civil — para a iniciativa dos indivíduos soberanos — as decisões econômicas essenciais”.

“O individualismo é um fator central da filosofia liberal e, naturalmente, do pensamento de Hayek. Individualismo não significa, certamente, aquela visão romântica segundo a qual todos os grandes fatos históricos, assim como os progressos definitivos nos âmbitos científicos, culturais e sociais, são produto de façanhas de indivíduos excepcionais — os heróis —, e sim, mais simplesmente, que as pessoas individuais não são meros epifenômenos das coletividades a que pertencem, que as modelariam tal como fazem as máquinas com os produtos industriais”.

“O grande adversário da civilização é, segundo Hayek, o construtivismo ou a engenharia social, a pretensão de elaborar intelectualmente um modelo econômico e político e depois querer implantá-lo na realidade, o que só é possível mediante a força — uma violência que degenera em ditadura —, e que fracassou em todos os casos em que foi tentado. Os intelectuais têm sido, para Hayek, construtivistas natos e, por isso, grandes inimigos da civilização”. O chamado da tribo

 

Karl Popper

     Sir Karl Popper foi um filósofo cuja ideias sobre a ciência do ponto de vista da filosofia contribuíram muito para o pensamento científico. Nesta breve homenagem, Llosa sintetiza as principais ideias de Popper não só sobre as suas contribuições para a ciência, mas sobretudo acerca das suas teorias da verdade objetiva e liberdade. Uma liberdade que Llosa segundo Popper se caracteriza por aquilo que se costuma chamar de liberal progressista. Llosa revela o pensador por trás do homem com uma visão muito ampla da sociedade. Eis algumas observações interessantes que Llosa faz acerca faz desse brilhante importante:

O liberalismo de Popper é profundamente progressista porque é impregnado de uma vontade de justiça que às vezes está ausente naqueles que reduzem o destino da liberdade apenas à existência de livres mercados,

Para Karl Popper, a verdade não se descobre: vai sendo descoberta, e esse processo não tem fim. Ela é sempre, portanto, uma verdade provisória, que dura enquanto não é refutada.

Entretanto, o pensamento de Popper não é relativista nem propõe o subjetivismo generalizado dos céticos. A verdade tem um pé assentado na realidade objetiva, à qual Popper reconhece uma existência independente da mente humana, e esse pé é, segundo uma definição do físico polonês Alfred Tarski, que ele adota, a coincidência da teoria com os fatos.

Que a verdade tenha, ou possa ter, uma existência relativa não significa que a verdade seja relativa.

Hipótese e teorias, ainda que falsas, podem conter doses de informação que nos aproximem do conhecimento da verdade.

Dentro da quase infinita série de nomenclaturas e classificações que os loucos e os sábios propuseram para descrever a realidade, a de Sir Karl Popper é a mais transparente: o mundo primeiro é o das coisas ou objetos materiais; o mundo segundo, o subjetivo e particular das mentes; e o mundo terceiro, o dos produtos do espírito.

O Estado, diz Popper, é “um mal necessário”. Necessário, porque sem ele não haveria coexistência nem uma redistribuição da riqueza que garante a justiça— já que a mera liberdade é em si mesma fonte de enormes desequilíbrios e desigualdades— e a correção dos abusos. O chamado da tribo

 

Raymond Aron

     Poucos foram os filósofos, professores, artistas entre outros que não se encantaram com o comunismo. Muitos, diante da fatídica revelação do que acontecia por trás da Cortina de Ferro da antiga URSS, se desiludiram e se dobraram aos fatos, outros nem tanto. Mas alguns jamais se deixaram iludir pela promessa do paraíso na terra prometida pela utopia comunista. Entre eles, destaque para Raymond Aron, filósofo francês, autor da famosa obra O Ópio dos Intelectuais, que é uma crítica impiedosa aos intelectuais da sua época ao defenderem os ditames do comunismo e do marxismo. As palavras de Aron, mitologia da esquerda é a compensação imaginária dos repetidos fracassos de 1789 e 1848″, revelam o fascínio que a esquerda intelectual tem pelos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade a ponto de fingirem que não via a realidade da sua época ao fazerem apologia a Stalin como o novo Prometeu e a URSS como modelo para o comunismo sob os quais a Europa e os Estados Unidos deveriam se espelhar. Os anos se passaram e em entre 1989 e 1991 Aron, de onde ele estivesse, deve ter acompanhado, em parte com profunda tristeza, o desdobramento desse momento tão crítico para o pensamento da esquerda. Isso porque ele deve ter ficado muito decepcionado ao perceber que mesmo com tudo que foi revelado o comunismo ainda fascina, sob outro verniz, o imaginário dos intelectuais. Seus ensaios de filosofia da história, de sociologia, e sua defesa tenaz da doutrina liberal, da cultura ocidental, da democracia e do mercado nos anos em que o grosso da intelectualidade europeia havia sucumbido ao canto de sereia do marxismo, foram plenamente confirmados pelo que ocorreu no mundo com a queda do muro de Berlim, símbolo do desaparecimento da URSS e da transformação da China em sociedade capitalista autoritária.

     Como pessoa, Aron era tímido e desajeitado, mas um gigante da sua época como pensador, observa Llosa na introdução do seu artigo. Como pensador Aron foi um imenso destaque e quase uma unanimidade até mesmo entre os detratores. Sempre foi fiel aos seus princípios e nunca teve dúvidas sobre as suas teorias acerca dos caminhos da esquerda ocidental. Para Llosa Raymond Aron se contrapôs sobretudo aos pensadores radicais de esquerda da sua geração. Foi um impugnador tenaz e, durante muitos anos, quase solitário, das teorias marxistas e existencialistas de Sartre, Merleau-Ponty e Louis Althusser 

     Raymund Aron, mostra-nos Llosa, não ficou isento dos ataques da esquerda. De fato, na França da sua época, infeliz era o pensador que nadasse contra a maré. Aron nadava contra e com grandes braçadas. Isso incomodava muito ao establishment intelectual que do alto da sua prepotência colocava Sartre num pedestal enquanto Aron era vilipendiado. Ao refletir sobre essa questão na atualidade concluímos que não é diferente hoje para os intelectuais de direita. Eles são severamente criticados. Na verdade o marxismo ainda é o ópio dos intelectuais. Llosa revela isso em sua obra ao escrever: Numa época fascinada pelo excesso, a iconoclastia e a insolência, a sensatez e a urbanidade de Raymond Aron eram tão pouco vistosas, tão contraditórias com o torvelinho das modas frenéticas que mesmo alguns dos seus admiradores pareciam concordar secretamente com a fórmula malévola cunhada por alguém nos anos 1960 que dizia ser “preferível errar com Sartre a ter razão com Aron”.

     Consequentemente intelectual de direita que  não se dobra ao establishment intelectual da esquerda é relegado ao ostracismo, na linguagem da atualidade, cancelado. Veja o caso de Peterson Jordan, Ben Shapiro e Olavo de Carvalho. Esses pensadores são tratados como da extrema direita e é imperativo que sejam desacreditados, suas ideias desconstruídas e que não encontrem espaços para expô-las e ecos nos jovens. É o que aconteceu com Raymond Aron quando comparado com Sartre conforme mostra Llosa ao escrever: “Por que, então, se não as ideias, o glamour midiático do ilegível Sartre continua vivo enquanto a figura do sensato e convincente Raymond Aron não parece seduzir quase ninguém?

Com a palavra, Mario Vargas Llosa:

Vivemos na civilização do espetáculo, e os intelectuais e escritores que costumam figurar entre os mais populares quase nunca o são pela originalidade de suas ideias nem pela beleza de suas criações, ou, em todo caso, não apenas por razões intelectuais, artísticas ou literárias. São populares principalmente por sua capacidade histriônica, pela forma como projetam a sua imagem pública, por suas exibições, seus desplantes, suas insolências, toda aquela dimensão bufa e ruidosa da vida pública que hoje em dia faz as vezes de rebeldia (na verdade, atrás dela se esconde o conformismo mais absoluto) e da qual a mídia tira proveito, transformando seus autores, tal como os artistas e os cantores, em espetáculo para a massa.

Nas últimas eleições francesas, um jovem que fazia suas primeiras intervenções no campo político, Emmanuel Macron, despertou um entusiasmo extraordinário, sobretudo nas novas gerações, com ideias de centro-direita que, à primeira vista, parecem bastante próximas daquelas que Raymond Aron defendeu por toda a sua vida“.

A China deixou de ser comunista para se tornar um modelo de capitalismo autoritário. Entretanto, seria precipitado dizer que a história deu a razão a Raymond Aron. Porque, embora a ameaça do comunismo, contra o qual ele se bateu sem trégua, deixou de sê-lo para a democracia no mundo — só um demente adotaria como modelos para seu país os regimes da Coreia do Norte, de Cuba ou da Venezuela —, esta não ganhou o jogo e é provável que jamais ganhe por completo.” O chamado da tribo

 

Isaiah Berlin

     Conheci dois livros de Isaiah Berlin quase por acaso. Foi grata a surpresa que tive com a homenagem que Llosa fez a este brilhante homem de letra. Llosa em tão pouco texto me lançou nas profundezas da obra e da personalidade Isaiah Berlin, complementando o pouco conhecimento que tinha das ideias desse estupendo pensador. Aqui as suas duas importantes ideias entre tantas outras são delineadas de maneira que prende o leitor e faz nascer neste uma grande admiração por uma figura tão ímpar. Eis alguns reconhecimento de Llosa pelo grande pensador:

A técnica que o professor Berlin empregava para nos fazer sentir que ele não está por trás dos seus textos é o fair play

“Fiel ao método indireto, Isaiah Berlin expõe sua teoria das verdades contraditórias ou dos fins irreconciliáveis através de outros pensadores, nos quais encontra indícios, adivinhações, dessa tese”

Que a injustiça social seja o preço da liberdade e a ditadura, da igualdade — e que a fraternidade só possa se concretizar de forma relativa e transitiva, por causas mais negativas que positivas, como no caso de uma guerra ou cataclismo que aglutine a população num movimento solidário — é algo lamentável e difícil de aceitar”

Que existam verdades contraditórias, que os ideais humanos possam entrar em conflito não significa para Isaiah Berlin que devamos ficar desesperados e nos declarar impotentes”

Se há verdades que se rejeitam e fins que se negam, devemos aceitar a possibilidade do erro nas nossas vidas e ser tolerantes com o erro dos outros”

A palavra “liberdade” foi usada, aparentemente, de duzentas formas diferentes. Isaiah Berlin contribuiu com dois conceitos próprios para esclarecer essa noção que, com toda justiça, chama de proteica: liberdade “negativa” e “positiva””

“Enquanto a liberdade “negativa” quer acima de tudo limitar a autoridade, a “positiva” quer se apropriar dela, exercê-la”

Enquanto a liberdade “negativa” leva em conta principalmente o fato de que os indivíduos são diferentes, a “positiva” considera antes de mais nada o que eles têm de semelhante

Todas as utopias sociais de direita ou de esquerda, religiosas ou laicas, se fundam na noção “positiva” da liberdade”

A metáfora do ouriço e da raposa aparece no começo do seu magistral ensaio sobre a teoria da história de Tolstói”

“Disfarçado ou explícito, em todo ouriço há um fanático; numa raposa, um cético e um agnóstico” O chamado da tribo

Jean François-Revel

     “Uma valiosa contribuição da França contemporânea no campo das ideias não foram os estruturalistas, os desconstrucionistas nem os “novos filósofos”, mais vistosos que consistentes, e sim um jornalista e ensaísta político: Jean-François Revel”. Assim começa a exposição de Mario Vargas Llosa sobre o perfil do insigne filósofo Francês Jean François-Revel. Confesso que nas minhas muitas leituras acerca da literatura filosófica-política não tive contato com o pensamento filosófico de Revel, razão pela qual nada me resta a fazer a não ser transliterar a percepção de Llosa sobre o respeitado filósofo. Entretanto, não resta dúvidas que a partir das reflexões de Llosa sobre as ideias e a pessoa de Revel nasce um forte desejo de conhecer as suas ideias em face a grandeza da exposição feita por Llosa. Isso é o que aconteceu comigo, razão pela qual limito-me a compartilhar com o leitor desta resenha os textos destacados na percepção de Llosa sobre o autor. O chamado da tribo

Seus livros e artigos, sensatos e iconoclastas, originais e incisivos, eram sempre refrescantes em meio aos estereótipos, preconceitos e condicionamentos que asfixiaram o debate político do nosso tempo. Por sua independência, sua habilidade para perceber quando a teoria deixa de expressar a vida e começa a traí-la, sua coragem para enfrentar as modas intelectuais e sua defesa sistemática da liberdade em todos os terrenos em que ela é ameaçada ou desnaturalizada, Revel faz pensar num Albert Camus ou num George Orwell dos nossos dias. Seu combate, tal como o deles, foi também bastante incompreendido e solitário.

Como no caso do autor de 1984, as críticas mais duras de Revel foram disparadas contra a esquerda, apesar de ter sido, boa parte de sua vida, um socialista, e desse mesmo lado recebeu os piores ataques. Sabe-se que na vida política o ódio mais forte é despertado pelo parente mais próximo.

Porque se alguém conquistou com justiça o título, hoje tão prostituído, de “progressista” no campo intelectual foi ele, cujo esforço se dirigia a remover os clichês e as rotinas mentais que impediam as vanguardas políticas contemporâneas de entender os problemas sociais e propor soluções para eles que fossem ao mesmo tempo radicais e possíveis. Para realizar essa tarefa de demolição, Revel, como Orwell nos anos 1930, optou por uma atitude relativamente simples, mas que poucos pensadores dos nossos dias praticaram: a volta aos fatos, a subordinação do pensado ao vivido.

Decidir a validade das teorias políticas em função da experiência concreta é revolucionário hoje, pois o costume que se impôs e que foi, sem dúvida, o maior empecilho da esquerda em nossos dias é a oposta: determinar a partir da teoria a natureza dos fatos, o que geralmente leva a deformar estes últimos para que coincidam com ela.

Nada mais absurdo do que acreditar que a verdade desce das ideias para as ações humanas, e não que são estas que nutrem aquelas com a verdade, pois o resultado dessa crença é o divórcio entre ambas, e isso foi o mais característico na época de Revel (sobretudo nos países do chamado terceiro mundo) nas ideologias de esquerda, que costumavam impressionar sobretudo por sua furiosa irrealidade.

Para Revel, os fatos interessavam mais que as teorias, e ele nunca teve o menor problema em refutá-las se considerasse que não eram confirmadas por eles. A alienação política em que vivemos deve ser muito profunda para que alguém que se limitava a introduzir o senso comum na reflexão sobre a vida social — pois não é nada mais que isso insistir em submeter as ideias à prova de fogo da experiência concreta — parecesse um dinamitador intelectual.

Conclusão

     Assim, Mario Vargas Llosa compartilha conosco do alto da sua sabedoria, erudição e conhecimento de ideias e pessoas que, assim como ele descreve no início do livro, foram importantes na sua formação intelectual mas que acima de tudo, no seu ponto de vista, foram construtores de ideias  cada um ao seu modo que ajudaram a moldar o pensamento liberal ocidental moderno.