Em pleno século XXI milhares de crianças em vários países africanos são sequestradas para servir como crianças-soldados aos grupos terroristas. Esta tragédia humana é minuciosamente detalhada no livro Kadogos, da jornalista Carla Trabazo.
A autora, imbuída pela curiosidade e a necessidade, viaja para o continente africano a fim de apresentar ao mundo a terrível vida dessas crianças. O que Carla Trabazo revela é mais uma constatação de como a humanidade ainda vive na barbárie e de que a tal “justiça social” é uma utopia. Seja por aqueles que praticam tais atos cruéis ou pela omissão de muitos, salvo alguns poucos indivíduos e instituições que arriscam as suas vidas para mostrar tal carnificina, o que se apresenta é o sofrimento de crianças que têm a sua infância arrancada delas e a transformação da inocência dessas crianças em seres humanos assassinos cruéis. Elas não têm culpa, são crianças, doutrinadas para matar. Mas engana-se quem achar que este é um problema apenas do continente africano.
Não é mera coincidência o alastramento de tal fenômeno no Brasil. Aqui, como lá, nas favelas dominadas pelas facções de traficantes, crianças são cooptadas para trabalharem para o tráfico como “vigias da área”, cujo objetivo principal é alertar a presença de “intrusos”. Não é incomum as crianças nutrirem mais admiração e respeito pelos traficantes do que pelas autoridades institucionais. Para elas, além da possibilidade de poder, sexo e a ideia de pertencimento a uma “comunidade” que fornece “proteção”, entrar para a facção de traficantes é a garantia de ajuda financeira para as suas famílias.
Entretanto, por medo, por coerção, uma parte considerável das crianças é obrigada a se “alistar” nas facções. Se elas não acatarem as ordens dos traficantes, perseguições e mortes são o que as crianças e suas famílias vão sofrer. Esse é um dos muitos problemas que a incompetência e a ganância dos nossos políticos e governantes não conseguem resolver. Que o livro Kadogo chegue aos nossos políticos e os sensibilizem para o grave problema dos kadogos brasileiros.
“Os kadogos – expressão no dialeto suaíli para denominar crianças-soldado – são para o mundo como o próprio significado da palavra: pequenos e insignificantes. Seres humanos descartáveis, fáceis de repor e de manipular, disponíveis aos montes em todos os países.”
“Em Uganda, o LRA, comandado por Joseph Kony, já sequestrou mais de 20 mil crianças ao longo dos 21 anos de conflito com o governo ugandês, sendo um dos primeiros grupos armados a possuir os combatentes mais jovens da história, de apenas cinco anos de idade.”
“Eu comecei a chorar. Tinha 11 anos. Um dos homens disse que me mataria também se não parasse de chorar. Eles levaram meus irmãos e eu e deixaram meu pai em casa, com o corpo de minha mãe”.
“Essa era a ordem dos comandantes. Mas, para provar que realmente os matamos, tínhamos que cortar seus pênis e colocar em um balde. Geralmente, voltávamos com baldes cheios.”
“Eu não lembro quantas vezes a acertei, mas foram muitas. Ela foi morta por não responder ao LRA direito. Até hoje não consigo comer um prato típico feito com amendoim, pois me faz lembrar o cérebro dela saindo enquanto eu batia.”
“Matei mulheres, crianças… eu ainda me sinto muito culpado. A primeira morte foi a mais difícil, mas matar crianças me deixava mal; eu não conseguia dormir e tinha pesadelos com elas.”
“Teve um dia que tivemos que matar um monte de professores em uma escola. Os comandantes cozinharam os professores e serviram para todo mundo. Todos estavam comendo.”
“Um dos comandantes percebeu o que eu estava fazendo e me mandou pegar uma perna e uma cabeça ainda inteiras. Ele me fez comer aquilo tudo, porque se não comesse, ele me mataria. Eu estava me sentindo mal, mas mastiguei tudo, até os ossos.”