Cartas Sobre a Tolerância foi escrita em 1689, pelo filósofo inglês John Locke, em meio a intensos conflitos religiosos de grande proporção entre as igrejas católicas, protestantes e anglicanas. Este ensaio foi muito importante para o que Locke viria a escrever mais tarde sobre a liberdade em seu famoso livro Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Desta forma, à tolerância religiosa se seguiu a liberdade religiosa e essas noções foram fundamentais para a germinação de ideias que em pouco tempo seriam decisivas para a fundação do liberalismo clássico lockeano. “Cartas Sobre a Tolerância” se tornou um marco histórico por conter as ideias germinais que fundamentaram o pensamento moderno sobre liberdade e tolerância. Também foi um ponto importante na oposição que as elites intelectuais faziam ao absolutismo, marcando assim o início do seu declínio como forma de governo.

É neste contexto histórico que o iluminista John Locke escreveu “Carta Sobre a Tolerância”, endereçando-a a um amigo, a fim de manifestar a sua posição sobre a intolerância religiosa que se apresentava naquela época. De fato, magistrados e a Igreja não distinguiam o governo das almas do governo civil, lembra o ilustre filósofo. Para Locke este período é marcado pelo empenho dos reis e magistrados para obter riquezas, prestígios e domínio sobre o povo, preservando o status quo. Do mesmo modo ele faz crítica a intolerância religiosa dos clero. 

 Nessa perspectiva, Locke sustenta que a tolerância deve ser a marca distintiva de qualquer religião, principalmente quando se tratar das Igrejas católicas e protestantes, cujos conflitos religiosos entre os séculos XVI e XVII, causados pela intolerância, arruinou a Europa. Do mesmo modo, Locke se opunha à soberania da igreja como governante secular, visto que a Igreja e o soberano disputavam o poder político. Para Locke a verdadeira função da religião é regular a vida dos homens segundo as regras da virtude e da piedade e que está na tolerância religiosa um exemplo da aplicação direta dos ensinamentos de Jesus Cristo. Locke assegura que a verdadeira função da religião consiste “em algo completamente distinto”, e que a religião “não é instituída a fim de erigir pompa exterior, nem para obter domínio eclesiástico ou para exercer força coerciva, mas para regular a vida dos homens segundo as regras da virtude e da piedade”, portanto de certa maneira, Locke pressupõe que é necessário que a Igreja e o Estado tenham funções distintas, sem que um se intrometa nos assuntos do outro, noção muito cara aos iluministas da época. Ele argumenta que o governo tem como função primordial a segurança dos governados, protegendo os seus bens, garantido os seus direitos civis e liberdades. Essas ideias, vistas em “Segundo Tratado Sobre o Governo Civil” , outorgam ao governante as prerrogativas da força da Lei e da violência quando necessário para garantir a ordem. 

Entretanto, Locke tinha bem claro a ideia dos papeis da Igreja e do Estado a ponto de argumentar que o uso da força é um expediente apenas do governante, não devendo nenhuma pessoa, usar a força, excetuando apenas os casos de autodefesa contra a violência injusta, do mesmo modo ele argumenta que nenhuma pessoa privada tem o direito de prejudicar de qualquer maneira outrem no gozo de seus direitos civis por ser este de outra Igreja ou religião, de onde conclui que ninguém, portanto, in fine, sejam pessoas ou Igrejas, e sequer comunidades, pode, a justo título, violar os direitos civis e os bens terrenos de outrem em nome da religião. Sendo assim, de acordo com a sua concepção de governo civil é função do Estado garantir a inviolabilidade dos bens do cidadão até mesmo contra os abusos da Igreja.

Não obstante, Locke apresenta três considerações que fundamentam a sua tese de que o governo civil não deve exercer o papel que Deus delegou à Igreja. Em primeiro lugar, Locke explica, não deve porque não cabe ao magistrado civil o cuidado das almas não mais do que a quaisquer outros homens. Em outras palavras, na visão de Locke, quando se trata de cuidar da alma do homem, o governante civil não tem autoridade para fazê-lo, deixando claro que a autoridade do Estado é apenas civil e que Deus não lhe conferiu nenhum poder divino ao governante, como comumente se acreditava na época. Em segundo lugar, Locke sustentava que o cuidado das almas não pode ser de competência do magistrado civil porque o poder deste consiste totalmente em força exterior, enquanto a religião verdadeira e salvadora consiste na persuasão interior do espírito, sem a qual nada pode ser aceitável para Deus. Na sua terceira consideração Locke argumenta que o cuidado da salvação das almas não pode ser de responsabilidade do magistrado porque mesmo que a autoridade das leis e a força das penas fossem capazes de convencer e mudar o espírito dos homens, isso em nada ajudaria a salvação de suas almas. Portanto, Locke acreditava que o poder do governo civil se relacionava apenas aos interesses civis dos homens e nada mais. Ele defendia que cabia apenas a Igreja o zelo das almas das pessoas, mas esta não tinha absolutamente nenhuma autoridade para discriminar quem quer que fosse pelas suas opções religiosas.

De fato, como um bom cristão Locke compreende bem que a intolerância religiosa é uma desobediência direta dos ensinamentos de Jesus Cristo, porque, para ele a crer no Evangelho e nos apóstolos, ninguém pode ser cristão sem caridade, e sem aquela fé que age, não pela força, mas pelo amor. Diante disso, apelo à consciência dos que perseguem, atormentam, destroem e matam outros homens sob o pretexto da religião. Locke critica aqueles que se dizem bons cristão, mas fazem exatamente o oposto do que é ensinado nas Sagradas Escrituras. Para estes, Locke adverte: quem faz o contrário, sendo cruel e implacável com os que discordam de sua opinião, mas tolera iniquidades e vícios morais que não condizem com a denominação de cristão, por mais que fale acerca da Igreja, demonstra claramente por suas ações que busca outro reino, e não o avanço do Reino de Deus.

As reflexões de Locke evidenciam as urgências de uma época marcada pela intolerância como regra e pela busca da liberdade como ideal. Esse anseio por um mundo de pessoas realmente livres, com direitos assegurados e comprometidas com a felicidade, foi também o grande objetivo dos iluministas entre os séculos XVII e XVIII, assim como continua sendo um imenso objetivo da humanidade contemporânea. Apesar dos avanços na conquista de liberdades e direitos, ainda estamos longe de alcançar o ideal. Em nossa época, enfrentamos mais intolerâncias do que no tempo de Locke, incluindo fundamentalismo religioso, racismo, identitarismo e intolerância política, entre outras. Locke advertiu, com notável clareza, que nenhuma paz e segurança, muito menos amizade, pode ser estabelecida ou preservada entre os homens enquanto prevalecer a opinião de que o domínio se funda na graça e de que a religião deve ser propagada pela força das armas. O apelo à tolerância reflete um desejo universal da humanidade, tanto hoje quanto no “Século das Luzes”. No entanto, enquanto não superarmos a intolerância que nutrimos em relação ao vizinho, ao colega de trabalho ou a pessoas próximas, não seremos capazes de erradicar suas manifestações mais extremas, como o fundamentalismo.

 

Reflexões

Considerando ser de vosso agrado perguntar minha opinião acerca da tolerância mútua entre cristãos em suas diferentes confissões religiosas, devo responder, com brevidade, que considero a tolerância a principal marca distintiva da verdadeira Igreja.

A função da verdadeira religião consiste em algo completamente distinto. Ela não é instituída a fim de erigir pompa exterior, nem para obter domínio eclesiástico ou para exercer força coerciva, mas para regular a vida dos homens segundo as regras da virtude e da piedade.

A crer no Evangelho e nos apóstolos, ninguém pode ser cristão sem caridade, e sem aquela fé que age, não pela força, mas pelo amor. Diante disso, apelo à consciência dos que perseguem, atormentam, destroem e matam outros homens sob o pretexto da religião.

Essas considerações, entre muitas outras que podiam ser arroladas com o mesmo propósito, parecem-me suficientes para concluirmos que todo o poder do governo civil diz respeito apenas aos interesses civis dos homens, estando restrito a cuidar das coisas deste mundo, e nada absolutamente tendo que ver com o mundo por vir.