Na sociedade em que lugar de livros é no flamejar das fogueiras e não nas estantes, os poucos que ousam desafiar as autoridades defensoras da “pureza de pensamento dos cidadãos” viram seus livros arderem sob os olhos de bombeiros “doutrinados” não para combater incêndios, mas para serem os executores implacáveis dos livros, queimando-os em fogueiras que reúnem multidões em êxtase para verem se transformar em cinzas todos os registros da história, da filosofia, do pensamento.
Nessa sociedade, quem desafiasse a vontade do “povo”, teria de prontidão os bombeiros e suas pistolas incendiárias, dedicados benfeitores da humanidade, dispostos a jogar na fogueira todos livros existentes e, quem desafiasse a ordem estabelecida. Um bombeiro, Guy Montag, fruto do seu tempo, que após um encontro com uma adolescente que pensava livremente e valorizava os detalhes, “os porquês” e “os para quês” passou a questionar a sua vida e a sociedade.
A partir daí, Guy é o prêmio para legitimar a “nova ordem” de uma sociedade ávida por pão e circo. Para escapar da morte, Guy se junta àqueles remanescentes do velho conhecimento cuja missão é guardar na memória quantos livros fosse possível, pois este era o único lugar seguro. Esta é a sociedade imaginada para os anos 90 pelo escritor Ray Bradbury em seu romance Fahrenheit 451
O livro tem tudo a ver com o momento atual. Esta relação fica evidente nas palavras do chefe dos bombeiros Beatty que explica na ficção a realidade que vivemos fora das páginas. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Veja o que Beatty pensa sobre a sua sociedade.
Como os livros foram se tornando escassos:
“Clássicos reduzidos para se adaptarem a programas de rádio de minutos, depois reduzidos novamente para uma coluna, livro de dois minutos de leitura, e, por fim, encerrando-se num dicionário, verbete de dez a doze linhas.”
O esvaziamento de tudo aquilo representa os valores tradicionais:
“A mente humana entra em turbilhão sob as mãos dos editores, exploradores, locutores de rádio, tão depressa UE a centrífuga joga fora todo o pensamento desnecessário… A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramáticas e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Porque que aprender alguma coisa além de apertar botões, achar interruptores, ajustar parafusos e porcas?”
As passagens abaixo, na minha opinião, refletem exatamente a lenta transformação pela quais vem passando as sociedades. É a morte da história, das tradições, da cultura. Toda a cultura do mundo sendo jogada na fogueira para queimar lentamente, sem rastro, sem memória:
“Mais esporte para todos, espírito de grupo, diversão, e não se tem de pensar, não é? Organizar, tornar organizar e superorganizar super-superesporte. Mais ilustrações nos livros. Mais figuras. A mente bebe cada vez menos.”
Vivemos a era da hegemonia das minorias:
“Agora tomemos as minorias das nossas civilização, certo? Quanto maior a população, mais minorias. Não pise no pé dos amigos dos cães, dos amigos dos gatos, dos médicos, dos advogados… Todas as menores das menores das minorias querem ver seus próprios umbigos, bem limpos. […] A coisa não veio do governo. Não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias realizaram a façanha, graças a Deus.”
Não há aqui os ideais dos antigos gregos que um corpo forte uma mente sadia forma-se uma sociedade melhor em todos os sentidos. Somos a cultura que dá valor aos músculos no lugar do cérebro:
“Com a escola formando mais corredores, saltadores, fundistas, remadores… em lugar de examinadores, críticos, conhecedores e criadores imaginativos, a palavra “intelectual”, é claro tornou – se o palavrão que merecia ser. […] Um livro é uma arma carregada na casa vizinha. Queime-o.”
Um alerta direto para que as famílias retome a educação dos seus filho. Escola transmite conhecimento, saberes. Quem educa é a família. Note que o nosso sistema de ensino segue a linha aplaudida por Beatty:
“O ambiente familiar pode desfazer muito do que a gente tenta fazer na escola. É por isso que teremos reduzido a idade mínima para admissão no jardim de infância, ano após ano, até que agora praticamente estamos apanhando as crianças no berço.”