A distopia é a definição para as sociedades futuristas em que pessoas vivem sob o julgo de governos despóticos numa espécie de servidão voluntária. A distopia é a antítese da utopia, embora utilize-se das virtudes desta última para conduzir os indivíduos a um destino apocalíptico. As distopias mostram o que aconteceria com as pessoas que vivessem numa sociedade revolucionária, um simulacro da sociedade perfeita, mas que na prática traduziria-se no aniquilamento do homem e de todos os valores. Com efeito, as distopias são a desconstrução do homem, para que no seu lugar surja um novo homem, sem espírito, sem vida, sem valor.
Foi John Stuart Mill (1806-1873) que primeiro associou a distopia a um lugar onde o mal governava. Ele se expressou da seguinte forma ao contrapor-se aos seus oponentes na Câmara dos Comuns: “É, provavelmente, demasiado elogioso chamá-los utópicos; deveriam, em vez disso, chamá-lo distópico. O que é comumente chamado utopia é demasiado bom para ser praticável; mas o que eles parecem defender é demasiado mau para ser praticável”. As palavras de Mill enquadram-se perfeitamente nos cenários criados pela literatura distópica que surgirá no século XX: uma revelação de sociedades estupidas e dementes sob domínio de sistemas totalitários.
Obras distópicas como 1984 de George Orwell, Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e 451 Fahrenheit de Ray Bradbury tiveram como fonte inspiradora o romance do russo Ievguêni Zamiátin (1884-1937) intitulado Nós. É sobre esta obra germinal que falaremos agora. Escrito em 1926 e condenado pelo regime stalinista, o autor se inspirou no socialismo soviético, fato que fez com que Josef Stalin (1878-1953) perseguisse o autor e o condenasse a prisão. “Nós” narra uma sociedade “perfeita” em que os cidadãos vivem “felizes” e obedientes sob o controle de uma entidade abstrata e “benevolente”: o Estado Único.
A história é uma espécie de memória própria do personagem D-503, um “feliz” cidadão do “Estado Único” que, ao final de todos os dias, anota, como num diário, o seu cotidiano. Todos têm que fazer isso, pois o autojulgamento é obrigatório. É também o meio pelo qual D-503 conversa com o leitor, um tipo de juiz silencioso. Nesta sociedade todo o pensamento é construído dentro de uma filosofia matemática em que os números e suas equações representam o único valor verdadeiro e, portanto, a principal filosofia de vida depois do Estado Único. Para as pessoas que vivem nesta sociedade, a ciência e a tecnologia são o meio de transformar tudo na busca de valores lógicos, exatos, sem sentimentalismo.
A vida dos habitantes desta sociedade é regulamentada por sistemas que a tudo controla e, vigia cada passo dos seus “cidadãos”. As pessoas têm hora para tudo, devidamente controlado por um relógio central, inclusive para o sexo, cuja tabela é um documento cuidadosamente guardada pelos casais. Nela, os habitantes adultos deste “paraíso” marcam o dia da semana em que os números (as pessoas) podem se entregar às carícias amorosas e até fazer sexo, tudo sob o olhar atento e benevolente do Estado Único. D-508 mora numa espécie de alojamento semelhante a uma colmeia e trabalha num grande projeto chamado Integral, ou um foguete que levará os números para o lugar, em algum lugar. Este é o maior projeto, segundo o próprio D-508, elaborado desde a criação do Estado Único, há mil anos. No final, como em toda distopia, o homem paga caro com a perda total da liberdade e quando não perde a vida, vive como se dela fosse totalmente desprovido.
Nesta, como em todas as outras distopias, há um sistemático desprezo por tudo que é do passado. O passado (século XX) é visto como uma era de selvageria e ignorância e que não deve ser lembrado. As memórias destes “tempos sombrios” são paulatinamente apagadas e substituídas por novas “histórias” de perseverança e sacrifício na luta pelo bem geral. Em reconhecimento aos “sacrifícios” realizados pelo Estado benfeitor ao se dedicar àqueles que se aconchegam sob as suas asas protetoras, todos põem-se dispostos a entregar toda a sua liberdade e dignidade é prol do glorioso futuro da humanidade.
“Nós” é um exemplo de uma nova ordem mundial em que o Estado, todo-poderoso substitui a família, a religião e Deus. Neste cenário sóbrio, cujos horizontes são obscuros, o indivíduo não saberá o que é liberdade, porque esta palavra será tirada do seu vocabulário e do seu consciente. A história e todos os seus valores, culturas e crenças desaparecerão e uma nova humanidade será reescrita. O novo mundo de Zamiátin, Orwell e Huxley nascerá das cinzas da ignorância, mas não será este novo mundo a terra prometida e aquele, o mundo selvagem, como supunha D-508. Neste novo mundo, escreveremos a história morta de uma raça que um dia foi humana, que vivia em família e que acreditava em Deus. Parafraseando o economista americano Francis Fukuyama será “o fim da história e a morte do último homem”.