O Padre Sertillange (Antonin-Gilbert Sertillanges, 1863-1948), um luminar dotado de perspicácia intelectual ímpar, revelou-se um profundo conhecedor dos eminentes pensadores que atravessaram os tempos, ele próprio uma dessas cintilantes mentes. Suas reflexões perspicazes e profundas resplandecem em uma série de breves ensaios meticulosamente dispostos em sua homenagem à vida pensante. Aqui e ali, o pensamento sereno, inabalável em sua solidez, traça meticulosamente os matizes mais intrincados que, em nome da ciência, a humanidade tem sacrificado sua essência, subjugando-se ao mito. E é nesta exegese que reside sua obra, erguendo-se sobre os alicerces do mito moderno da ciência, o qual cavou o abismo que separa o homem do seu próprio espírito. No seu opúsculo intitulado O Mito Moderno da Ciência, Sertillange, motivado pelas considerações de proeminentes pensadores como Joseph Ernest Renan, Paul Valéry, André Gide, Henry Bergson e uma plêiade de outros destacados intelectuais, em uma série de breves ensaios, empreende uma análise do impacto da ciência no desenvolvimento do intelecto humano.
“Esta união da ciência, da mística e da cultura, com passagem duma para a outra, não será um dos sinais característicos das nossas publicações, das nossas exposições, dos nossos movimentos literários, artísticos e políticos?” indaga Sertillange. Para o eminente autor nenhuma ideologia está ao abrigo do imperativo desta lei, até mesmo pensadores como Karl Marx e seu materialismo histórico a ela se dobra.
O que pensar a partir da imersão em tão eloquentes vaticínios? Os horizontes da modernidade nos levou às revoluções. Conduziu-nos a tentativa de redesenhar o homem reformulando a sociedade à sua semelhança. Sertillange chamou a isso de Desvairamento da Modernidade, termo que também pode ser traduzido como um estágio da humanidade dominada pelo cientificismo. Escreveu Sertillange magistralmente sobre esse desvairamento: “Mas a razão essencial destas contradições está no fato de que o culto da inteligência arrasta consigo uma tendência, na aparência, inteiramente oposta, mas que, no entanto, é um aspecto inseparável e, até certo ponto, complementar, ou seja o oculto do instinto e do irracional”. O que pretende o consagrado autor ao investigar os descaminhos da ciência?
A compreensão dos escritos de um autor que fundamenta suas reflexões em um minucioso exame das obras de autores notáveis, porém em um âmbito de reconhecimento limitado, é uma tarefa desafiadora para a maioria dos leitores. No entanto, Sertillange, um erudito por excelência, consegue eficazmente transmitir em suas composições os elementos essenciais que merecem ser abordados. Às vezes, apenas o título de suas obras ou mesmo de um artigo abre um vasto leque de possibilidades para exploração. Isso é especialmente evidente em seu pequeno tratado intitulado O Mito Moderno da Ciência, como é o caso de todas as suas obras, que, apesar de não se destacarem pela volumosidade, conseguem articular de maneira concisa as intenções do autor.
Sertillange, na obra em destaque, atestará que o indivíduo contemporâneo adquire convicção na posse do conhecimento absoluto apenas por meio da análise crítica e da desconstrução. Sertillange dirá que é um problema filosófico sob os quais a ciência procura o seu lugar ao sol: “Assim surge o problema puramente filosófico que se impõe à ciência moderna: qual é o valor real dos seus primeiros princípios? A ciência viu-se obrigada a examinar de novo os seus postulados e abandonar muitos dos fundamentos mais sólidos que garantiam a sua consistência“.
No que consiste o mito moderno da ciência nos dias atuais? Para Sertillange o problema da ciência no contexto da espiritualidade passará por transformações, mas a questão se perpetuará no eterno conflito entre a religião e a ciência. Cabe-nos, homens de espíritos conciliadores dizer não, enfático, à tentativa de tornar o homem escravo do racionalismo, porque o que somos sem a religião, a moral, o passado, a arte e a inteligência, indaga Sertillange? Quando tentam arrancar esse patrimônio da existência humana, Sertillange nos ensina a dizer, do fundo da alma: não!
Convite à reflexão(Sertillange):
No entanto, a ciência continua a ser a ciência, sempre apoiada na medida e na verificação, e subsiste para ela este grave problema: a realidade, que é qualitativa e original, pode ser atingida por um espírito puramente crítico? Pode essa realidade ser dissociada e recomposta, de tal forma que os elementos atingidos tenham um valor absoluto, quer em si mesmos quer nas suas relações?
Pergunta-se agora: esse esforço para o real, por muito ardente, por muito frenético ou por muito ultra-real que seja, consegue o fim em vista? Esta vertigem de mecânica precisa, de violência destruidora dar-nos-á a única conquista que se pode considerar verdadeira, isto é, a posse completa do nosso ser, no que ele tem de veridicamente original, ou seja na sua qualidade?